<p> A tradição de investigação sobre policiamento teve início nos anos 60 nos Estados Unidos e no Reino Unido e conta hoje com um enorme volume de estudos. Desde a última década o interesse pelo tema tem sido ampliado na Europa, em particular em França, e em diversos outros países, de destacar o Brasil. Portugal, embora com tradição na investigação legalista e criminológica, não viu ainda nascer uma área de estudos policiais e segurança. O presente projecto, na sequência de estudos e projectos anteriores, visa contribuir para o lançamento de um campo de reflexão em Portugal. Os principais eixos reflexivos sobre policiamento público foram fornecidos por Reiner (1985), Bittner (1990), entre outros, ao evidenciarem que o mandato dos polícias é praticamente ilimitado, o âmbito criminal é uma parcela mínima do trabalho (apesar de mitos que alimentam a ideia da polícia-contra-o-crime). Os polícias revelam-se sobretudo gestores de ordens públicas e privadas das cidades, oferecendo respostas provisórias; o uso da coerção é secundário face ao recurso a negociações (legais e ilegais) nos contextos urbanos. Autores demonstram que a aprendizagem pela socialização supera a aprendizagem formal, mesmo se o policiamento é cada vez mais encarado como técnica e menos como prática (Manning & Van Maanen 1978).Até à década de 80 as obras de referência da sociologia nestes domínios não contemplam aquilo que veio a ser um tema fundamental a partir de 90: a mudança nas concepções que regem as relações entre o policiamento público e o privado.Desde então, os conceitos de polícia (de Estado) e policiamento são cada vez mais separados. O policiamento como função genérica não é propriedade do Estado, nem no presente nem historicamente (Reiner 1985). Este deve ser entendido numa acepção geral da ordenação das cidades, consistente com uma "visão do mundo social como irredutível e irrevogavelmente pluralístico, dividido numa multidão de unidades soberanas e posições de autoridade, sem ordem horizontal ou vertical, tanto de facto como em potencial" (Bauman 1988: 799). Neste sentido, têm surgido reflexões sobre formas de pluralismo jurídico (Santos & Trindade 2003). Na sequência da ideologia do policiamento comunitário e de proximidade (Skolnick & Bayley 1988), vários Estados têm apelado à parceria, contratualização com entidades privadas, defendendo a melhor governância das cidades (Cunningham & Taylor 1985). Sabemos no entanto muito pouco sobre que práticas estão a ter lugar em nome de, contra, ou ao lado de tais projectos. Conhecemos planos mas menos as mediações, os dispositivos, reacções, negociações e resistências em contexto e situação.O campo de saber sobre os policiamentos numa perspectiva pluralista é hoje muito mais limitado do que o que temos sobre os policiamentos de Estado, sendo que em muitos países ocidentais os últimos ocupam menos de metade dos recursos globais e custos da segurança (Johnston 1999). O conhecimento continua mais centrado no questionamento de modelos e políticas de organização e de articulação da segurança dos próprios Estados (ver por exemplo Roché 1998), mas pouco se sabe sobre as práticas efectivas e rotinas securitárias plurais que crescem diariamente nas cidades de todo o mundo. Referencias bibliográficas</p><p>Agier, Michel, 2002, "Between war and city : Towards an urban anthropology of refugee camps", Ethnography, Vol. 3 (3): 317-341.</p><p>Augé, Marc, 1994 [1992], Os Não Lugares : Introdução a uma antropologia da sobremodernidade, Lisboa, Editora Bertrand.</p><p>Bauman, Zygmunt, 1988, "Sociology and Postmodernity", Sociological Review, 36, 790-813.</p><p>Bittner, Egon, 1990, Aspects of Police Work, Boston, Northeastern University Press.</p><p>Cunha, M. Ivone, 2002, Entre o Bairro e a Prisão: Tráfico e Trajectos, Lisboa, Fim de Século-Edições.</p><p>Cunningham, William C. & Taylor, Todd H., 1985, The Hallcrest Report: Private Security in America, Portland, Oreg., Chancellor.</p><p>Fernandes, Luís, 2002 [1998], O Sítio das Drogas: Etnografia das drogas numa periferia urbana, Lisboa, Editorial Notícias.</p><p>Johnston, L., 1999, "Private Policing: Uniformity and Diversity", in R. I. Mawby, Policing across the World: Issues for the Twenty-first Century, 226-238, NY, London, UCL Press.</p><p>Manning, Peter K. & Van Maanen, John (org.), 1978, Policing: A view from the streets, New York, Random House.</p><p>Reiner, Robert, 1985, The Politics of the Police, Sussex, Harvest Press.</p><p>Roché, Sébastien, 1998, Sociology Politique de l'Insécurité: Violences urbaines, inégalités et globalisation, Paris, Presses Universitaires de France.</p><p>Santos, Boaventura de Sousa & Trindade, João Carlos, 2003 (org.), Conflito e Transformação Social: uma paisagem das justiças em Moçambique, Porto, Edições Afrontamento. </p><p>Shearing, Clifford D., 2003 [1992], "A relação entre policiamento público e policiamento privado", in Michael Tonry & Norval Morris (org.), Policiamento Moderno, 427-462, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo.</p>